quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um de dois


– O seu problema, sabe qual é?

– Qual?

– Não sei te explicar.

– Como assim não sabe?

– Não sei, cara. Não sei e pronto. Não sou obrigado a saber.

– E eu sou?!

– Mas é claro que é.

– Não, eu também não sou.

– É! É, sim!

– Não, não sou.

– É!

– Por quê?

– Como assim? Você ainda quer saber o porquê? Não tá na cara?

– Não.

– Como assim, cara? Tá na cara, sim. Bem na tua cara.

– Eu devo ser cego, então.

– Ou burro.

– Não, isso eu não sou.

– Inteligente é que não é.

– Se for pra ser inteligente como você, que sabe tudo sobre tudo, mas não sabe nada de nada...

– Como assim?

– Ah, você também não sabe? Então eu também não sei.

– Por que é que você tem que ser assim, hein?

– Assim como?

– Assim! Do jeito que você é.

– Deve ser porque eu sou eu.

– E eu sou eu, né?

– É. E você é você.

– É.

– E, graças a Deus, eu e você somos diferentes.

– Talvez.

– Talvez?

– Talvez, sim.

– Como assim? Não entendi.

– Você nunca entende.

– Por favor, me explica...

– Não quero.

– Você não acha que nós somos diferentes?

– Acho.

– E por que o teu “talvez”?

– Por causa do “graças a Deus”.

– E você acha que é graças a quem? Ao diabo?

– Só se ele for você.

– Eu não. Você, se for.

– Só se ele for eu ou você, porque Deus não tem nada com isso.

– A não ser que eu seja Deus.

– A não ser que você ou eu seja Deus!

– Mas você não é...

– Muito menos você. Você que não é mesmo.

– E você tá mais pra diabo.

– Eu não tô pra nada. Nem pra Virgem Maria.

– Mas pra Deus se incluiu.

– Não me incluí. Supus.

– Por quê?

– Pra dizer que ninguém tem nada a ver com o que eu ou você é.

– Ninguém?

– Só se outro alguém for eu ou você.

– Deus ou o diabo?

– Ou a Virgem Maria.

– E como é que você sabe?

– O quê?

– Que ninguém tem nada a ver com a gente?

– Eu não sei.

– Não?

– Não... Eu sinto.

– Deu pra ser sensitivo agora também?

– E você? Deu pra bancar o imbecil?

– Não. Não dei pra bancar, não.

– Porque imbecil é o que você é sempre, né?

– Porra, cara... Pára de ser desse jeito.

– Desse jeito como?

– Desse teu jeito, cara. Pára de ser escroto!

– Escroto?

– Não, eu também não sei explicar...

– Não sabe explicar o teu “escroto”?

– Não.

– Deve ser porque nós somos assim, diferentes...

– É... Talvez.

– Talvez?

– Talvez, sim. Talvez, graças a Deus.

– Ou graças a nós.

– De jeito nenhum!

– Como não? Graças a nós, sim!

– Não, não. Graças a mim e graças a você, que somos diferentes.

– Realmente...

– Melhor: graças a você e a mim, que não sabemos da vida um do outro.

– Graças a Deus!

– O quê?

– Que nós não sabemos um do outro.

– Talvez.

– Talvez?

– É. Talvez. Graças a Deus.

– Ou a nós.

– Graças a Deus.

– É... Graças!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Porto das caravelas

(para Felipe Damasceno)

Descobri a palavra certa, a que se encaixa bem na nossa boca. Descobri tua pele da roupa, descobri tua nuca e o teu suor. Descobri um monte de coisa. Descobri a nossa língua, o nosso chão. Descobri teu pescoço e deixei os meus suspiros serem descobertos.

Visitei teus cabelos com meus dedos e tentei descobrir tuas dores. Eram muitas – e eu tentei te curar. Conheci teu tédio e tentei sufocá-lo com um beijo na tua alma. Conheci tua fera e a acalmei com meus braços. E só através de ti, descobri meu porto, descobri meu instinto; descobri uma Nova Granada, o sabor da América.

Descobri meu pensamento e descobri o meu pensamento. E descobri o meu desejo nesse mesmo instante, perdido no meio dos teus monstros, escondido em todos os teus mares.

sábado, 14 de novembro de 2009

Revolução astral

(para Natasha Maciel)



Eles dois descobriram-se no mesmo caminho. Eram diferentes e nenhum dos templos os faria melhores. Nem os médicos, nem as receitas, nem qualquer filho da puta e as suas cartilhas.

O mundo parecia uma explosão. Havia um desejo incontrolável de arder, de erguer as mão fechadas e apontar, contra o resto apagado, todas as armas possíveis – os beijos, os segredos e as pátrias proibidas.

Não queriam mais a boa educação, não queriam casamento. Se uniram por também querer guerrear pelos que, como eles, tinham ódio dos que odeiam. Eles queriam, inclusive, que o mundo fosse uma união num laço além-sangue, num atestado transcendental, num anti-matrimônio de aliança. Queriam a fraternidade e a Turquia. Queriam mais que trezentos anos, queriam a imortalidade. Queriam a vermelhidão, os traços amarelos, as curvas e os círculos. Queriam era a comunhão. E queriam também força da liberdade.

Desejavam a realidade frenética, a revolução, a verdade imaterial. Não era um sonho. Era uma luta progressiva, devagar. O mundo, com o tempo, estaria mudado, pelo menos até dobrar a esquina. E talvez fosse esse o maior desafio: querer ir para além da fronteira.

Um dia, eles partiriam daqui para além das linhas divisórias que rezavam existir. Eles iriam um dia, sim. Mas num dia próximo. Num longo dia breve, onde não haveria mais as raias e os seus confins – e se tornariam, acima de outros astros, como corpos celestes, acima dos imbecis, estrelas do próprio pó.

domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre a força do primeiro instante

Há uma força que me empurra, que me faz seguir adiante quando tenho medo das coisas. Quando tenho cansaço, quando tenho sede, quando me falta o ar... Há uma força que me faz suportar, que me faz ter voz pra gritar, que me faz ter fome de vivência, de crença no que parece não existir.

Quando me deito no chão, essa força me faz levitar e levantar minhas asas. E são elas que me levam até o amanhã – com essa força que me faz querer ver o sol.

sábado, 24 de outubro de 2009

Primeira oferta

Não sou eu o dono, sou apenas o que intercede entre os mundos, entre dois ou mais planetas, entre estrelas, entre calos e açoites. Por isso aqui estão as minhas palavras. Quero dar todas, devolver a quem tem o direito sobre elas. Quero também ofertar meu corpo e meu espaço, quero também que levem a minha alma e meu peito tão doce e amargurado. Quero que cortem tudo em pedaços, que estraçalhem, que bebam, que comam, que se alimentem dos meus sonhos e meus pensamentos, dos meus passos, dos meus brilhos, dos meus infortúnios, dos meus desejos, dos meus ódios, dos meus ócios, dos meus ossos, dos meus órgãos, dos meus dias, dos meus fins...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Per(cepção

Talvez um dia eu abra os olhos e veja que tudo foi uma ilusão. Talvez um dia eu abra (mas talvez também não).

domingo, 30 de agosto de 2009

Melungeon

(para Vitória Germano)
– Tu vai ser meu amigo?

– Como?!

– Se tu vai ser meu amigo... Quero saber.

– Quando?

– Não sei, daqui a uns dez anos. Se eu te ligar pra gente sair, sei lá, pra tomar alguma coisa, ir num barzinho... Passar a noite conversando...

– Que é que tem?

– Tu vai?

– Claro que eu vou. Mas que pergunta é essa?!

– Não, é que eu queria saber... – e também eu queria ter essa certeza, só não perguntei. Talvez por medo da resposta, eu não sei. Não sei mesmo. Só sei que eu tenho segurança nas palavras. Eu tenho segurança e sinto medo quando elas me apontam a indiferença. Mas fiquei feliz, sim. Tão feliz pela pergunta que até perdi a vontade de saber o que estava por vir com o passar dos anos. Porque confiei naquelas palavras. Eu confiei como sempre confio, mas sem aquele pavor de quando a verdade tem gosto ruim. Confiei sem medo porque estava confiando em palavras simples, tão bonitas, calorosas, que não eram frias nem apáticas. Confiei porque não havia indiferença. E fui embora com aquelas de amor, guardadas comigo na superfície das minhas pupilas, onde fui tão feliz. Aqui nos meus olhos e aqui, tão dentro de mim.


segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Confusão ou Título de voltas turvas ou Enleio fundamental ou Nada a declarar ou Estou confuso e não quero explicações ou Espaço em branco e mais nada


e eu não tenho nada a declarar, estou confuso. Só sei que detesto esse tipo de confusão. Também detesto ter que criar explicações pelo simples fato de ter que haver alguma explicação. Mas em mim existe uma fome de objetividade, uma busca que me faz remoer minha confusão à procura de um ponto que explique isso tudo que eu sinto. Eu fico tentando, mas não encontro. É tão desgastante. É tão desagradável. Porque eu nunca acho essa linha de partida. Na verdade, nem os nós no meio dela. Eu não vejo nada além do espaço branco que fica aqui, só na minha cabeça, como se fosse um galpão iluminado, sustentado por colunas de concreto.

Então eu minto, eu invento, eu crio manifestações. É mais fácil do que ir atrás de algo que parece que nunca vai ser achado. E é muito difícil dizer dores sem motivos e alegrias sem causas. Eu não gosto. Não gostam também, me acusam de maluquice. Me acusam porque, quando estou confuso, começo a falar frases soltas. E escrevo coisas soltas também. Começo a ficar parado demais ou eufórico demais. Aí eu grito ou, dependendo do momento, eu calo. Dependendo, eu fico dependente dos ouvidos e dos olhos alheios, porque eu fico querendo que eles me ajudem a entender minha confusão. Mas ninguém consegue ajudar. E eu até entendo. Entendo mais eles do que eu mesmo me entendo Só que não me acostumo.

Eu não queria explicar pra ninguém como eu busco explicações pra minha confusão. Eu só quero escrever pra ter certeza de que meu pensamento existe mesmo. Porque às vezes eu acho que minha cabeça não é feita de realidade, que o que eu faço fecundar dentro dela é impossível de ser parido. Na verdade, eu estou escrevendo isso pra me sentir confortável... Não, na verdade, essa verdade é uma mentira. Ou não: essa mentira é também mentira, porque eu nem sei mais o que é ou não verdade... Vocês também não sabem. Não sabem se o que eu disse é mentira ou é verdade. Eu é que também não sei. Não sei a minha mentira e não sei a minha verdade. Não sei também qual é a de vocês. E nem quero saber. Se não acreditam, tudo bem. Também não quero acreditar. Não quero que acreditem em mim.

Na verdade, eu estou confuso. E acho que eu estou gostando de ser confuso. Acho que odeio ser confuso. Acho que gosto de saber que ninguém sabe se a verdade é de mentira ou se a mentira é de verdade. Acho que não gosto de não saber o que sabem sobre mim. Acho bacana escrever “bacana”, porque sempre quis escrever “bacana”. Acho que gosto de “fecho éclair”. Acho que gosto de chupar botões. Acho uma porcaria tudo o que eu escrevo. Acho que adoro abacate. Acho que odeio Coca-Cola. Acho que quero comer fígado amanhã. Acho que ninguém está acreditando em mim. Acho que todos acreditam em mim. Acho que vou tomar café. Acho que gosto disso. Acho que gosto de querer achar, embora nunca encontre. Acho sacana. Acho que tem quem me ache burro, porque inicio frases com pronome oblíquo átono. Acho bárbaro. Acho que não estou mais entendendo o que eu estou escrevendo, acho que estou dando voltas e mais voltas – e consigo achar isso bonito. E o mais bonito da confusão é a confusão que ela causa.

Me desculpem, eu detesto ter que pedir desculpas – ou inventar alguma desculpa e me desculpar por ela. Mas é que as palavras se perderam em mim e eu não tenho nada a declarar,

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Da felicidade que as vacas têm

– Vacas são felizes?

– São.

– Elas parecem ser tão calmas...

– É, parecem...

– Não, não parecem. Elas são calmas de verdade.

– É...

– A senhora é feliz?!

– Claro que sou.

– Não parece.

– Não pareço?

– Não sei. Sua calma não parece calma de verdade.

– E existe calma de verdade e calma de mentira?

– Não sei.

– ...

– Acho que existe.

– ...

– Mamãe.

– Oi.

– Existe vaca em todo canto do mundo todo?

– Não sei, meu filho. Acho que sim... Talvez. Não sei.

– Elas têm medo de morrer?

– Não sei. Devem ter.

– E por que elas têm tanta calma?

– Não sei...

– ...

– O que foi?

– Por que a gente come vaca, mamãe?

– Também não sei, meu bem.

– E por que a gente bebe leite?

– Eu não sei, meu filho! Não sei! A gente bebe leite porque mandam.

– Quem manda?

– Ninguém... Na verdade a gente come carne e toma leite pra ficar forte. Pronto!

– A senhora é forte?

– ...

– Acho que elas são mais fortes, mamãe. Porque elas são calmas e têm medo de morrer.

– E pessoas fortes têm medo de morrer, por acaso?

– Acho que sim.

– E são calmas?

– São.

– E se a calma delas for de mentira?

– Mas não é.

– Como você sabe?

– Porque vacas não mentem. Bicho nenhum mente.

– E como é que você sabe disso?

– Porque elas são felizes.

– ...

– E só quem mente é as pessoas que têm medo de vida.

– Medo de vida?

– A senhora tem medo?

– O que é medo de vida?

– A senhora tem medo ou não?

– Tenho. Claro que tenho.

– Então a senhora não é feliz?

– Sou!

– Então é medo de morte, mamãe?!

– Não, meu filho. É medo de outras coisas.

– Então a senhora está mentindo!

– Não estou mentindo. Por que sua mãe iria mentir pra você?

– É medo de vida?

– Também não.

– A senhora está mentindo, sim!

– Não. Não estou, não.

– E se está mentindo é porque não é feliz de verdade!

– Claro que não!

– A senhora tem medo de vida. Por isso mente.

– Eu não minto nunca! Eu sou sua mãe.

– E também nem é calma de verdade. É fraca!

– Você não fale assim comigo!

– ...

– Ouviu bem?!

– Desculpa.

– ...

– Mamãe.

– Oi.

– Por que a senhora falou gritando então?

– ...

– A senhora finge?

– O quê?!

– É que a senhora é alegre por fora, mas parece ser triste no coração.

– Isso não existe...

– Existe. A senhora parece forte, mas eu sei que não é.

– Acho que é melhor a gente voltar pro sítio, está ficando escuro, as vacas querem dormir.

– Mamãe?!

– Fala.

– A senhora tem medo de vida?

– De novo esse assunto?

– Tem ou não tem?

– E o que é ter medo de vida?

– Eu não sei.

– Então eu também não sei.

– Sabe. A senhora é adulta.

– E o que é que tem?

– Adulto tem medo de vida.

– E você tem medo de escuro!

– Mas ter medo de escuro é medo de morte.

– ...

– Medo de morte é diferente.

– O que é medo de morte?

– É medo de morrer.

– E medo de vida?

– É medo de ter calma.

– Ninguém tem medo de ter calma, meu filho.

– Tem medo, sim! A senhora parece que tem!

– Eu pareço ou eu tenho?

– Não sei dizer, a senhora mente muito.

– Eu não minto!

– ...

– Então... Quer dizer que as vacas são infelizes?

– Não.

– Mas elas não têm medo?

– Mas é de morte! E de morte é diferente!

– Claro que não.

– Claro que é!

– Diferente como?

– Medo de morte é quem não tem medo de vida.

– E medo de vida, o que é?

– É quem não tem medo de morrer.

– ...

– Quem tem medo de morte é porque deve ser feliz.

– Como você sabe?

– Aprendi com as vacas...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dança profana



Tive fome de dança, tive sede de vida. Quis comer das maravilhas e destruir todas as desgraças. Corri pelos ares, ornei-me em movimentos – e a poeira subiu para além da sola dos meus pés.

O ar se encheu de partículas que se tornaram estrelas! O fosco se fez brilho e as pedras se tornaram almas. Minhas pernas se abriram, minha cabeça se esvaziou de mim e eu fui coberto pelo som do mar. Meus olhos arderam com chamas secas e o vento me invadiu o litoral, o suor do meu peito. Entre uma onda e outra, pelas candeias e cantos da Virgem da Glória, minha boca salivava e eu soltava gritos como os gritos de “evoé!”. Não sabia nem saber o que falar – apenas gritava palavras redondas e invocações incoerentes, sílabas que enroscassem minha língua. Meus lábios sorriam. As narinas arquejavam pelo sopro profano e os dentes trincavam no ar impuro com vontade de tudo. Minha pele agitava os parangolés de Oiticica nos tecidos de Pamplona – e eu excitava em mim a certeza de que meu sangue era vermelho.

Meus braços se partiram e me levaram a dançar. Desdobrei-me para fora no auge do arrebatamento – fui consumido em mim. Fiz-me em minha libido e no silêncio da liberdade recriei a existência. Ultrapassei as linhas do meu corpo – e me tornei também uma estrela num êxtase de carne. Bebi a vida.


sábado, 1 de agosto de 2009

Amor de pudim

(para Letícia Trugílio)

Estava completamente só, sem saber de mais nada. Não havia ninguém que a censurasse por estar sentada ali, de pernas abertas. Preferia pensar sem saber no que estava pensando e olhava fixamente para o Cristo na parede da cozinha. Sua blusa velha estava encharcada de suor na gola e sua calcinha bege e esfolada, mas meio rosa por causa de desbote, cheirava a coisa usada. Os fantasmas, aos poucos, encarnavam em sua cabeça, fazendo-a pensar sobre um tal de um amor acontecido, enquanto tudo se inundava num copo de Coca-Cola com gelos de cubos falsos.

É que sei lá há quanto, aceitou um pedido de namoro. Disse um “sim” seguido de um beijo e fez de uma simples pergunta uma resposta positiva para si. Dedicou-se a ele, fez-se a ele, deu o que era ela a ele – mas só até onde pôde. E eles se gostavam, sim. Mas e o tempo passou e agora ela estava sentada ali, sozinha por preferir estar só. As coisas tinham perdido seu devido brilho e não havia mais valor. As risadas dele agora pareciam irritar ou invés de fazer rir também. Cansava-se só de imaginar ter que vê-lo sorrir. Aquela alegria que era só dele, a cada dia ficava mais dramática, mais trágica ou até cômica aos que, de fora, davam-se ao luxo ou ao direito de gargalhar, como uma platéia de uma irônica comédia de costumes.

Ele era bom demais, doce demais, amável demais. Não discordava nunca, era sempre disposto, sempre entregue – e esse era o problema de tudo. Não havia brigas ou cortes, nem cicatrizes de machados e facas. Não havia nada. Tudo estava ali, esperando traças. Era como um pudim molenga e sem doce, desonerando apenas por dentro, feito com ovos gorados e coberto por um mel queimado e meio amargo. Já estava virando uma peça de museu intacta – e não havia motivo para destruir uma obra tão bela aos mundos alheios. Se houvesse um rompimento – Deus sabe – a culpa seria dada imediatamente por não haver motivos aparentes. Seria injustiça, seria maldade com ele que, justamente, era tão bom.

Ela decidiu então ficar como uma múmia, apodrecida apenas por dentro dos linhos. Assim era melhor. Não haveria a culpa por tê-lo largado, não haveria vítimas nem fraturas expostas, e os carrascos não teriam que sujar as mãos de sangue. Era mais bonito também ser um túmulo glorioso. Um sarcófago que, por fora, era ouro ornado por pedrarias e, por dentro, era um cadáver dissecado, uma carne podre sendo comida entre lençóis empoeirados. Lençóis sem graça, sem vida. Como tudo havia se tornado: trivial demais – doce como pó de café solúvel na língua. Bege como a calcinha.

domingo, 26 de julho de 2009

Quebra-corpo

Meus pedaços estão desmontados. Agora sou vários – sou linhas e traços, líquidos, durezas num curto espaço. Sou um monte de coisas soltas; sou tantos e tão muitos, que são muito menores perante a imensidão de outros corpos que ainda não foram quebrados.

Minhas ilusões vazaram na languidez do meu escoamento. Virei partículas, tornei-me cacos.

Somos só eu: únicos na imensidão de um infinito – sem sonho, ásperos como grãos de Terra em terra.

domingo, 19 de julho de 2009

Ritmo de festa



Domingo é o pior dia. Tudo fica lento, as horas não passam. As ogivas são sem vida, suas cores são mortas. E é tudo quente demais. E é sem vento. Na TV, as mulheres dançam com sorrisos comprados – os braços, o improviso, as pernas cruzadas, a jogada de cabelo, o salto prateado, os brincos em metros e os peitos siliconados quase pulando pra fora do figurino cafona de lantejoulas lilases e pedrarias vermelhas. As músicas são as piores possíveis. O futebol pára a ruas e os patrocinadores compram as máquinas – enquanto os homens tomam cerveja e as mulheres falam de tratamento capilar inteligente. Mas o tédio – o tédio é sempre o mesmo – é o mesmo de todas as semanas.

Tudo tenta ser fantástico, em ritmo de festa, mas nada me agrada muito. Não acredito no descanso de Deus e acho que a ressurreição de Cristo foi em outro dia. Nem os babilônicos me excitam muito com o seu Shamash. Nem os churrascos de família – acho tudo falsidade. Nem as carnes vermelhas. Nem a República Dominicana. Nem as festas pagãs.

As pessoas são tomadas por uma alegria sem graça, com gosto de refrigerante com cheiro de barata. É uma alegria dominical, absurda e sem propósito. Uma alegria de gelatina em pó, fingida e sem escapatória, onde a família feliz é centro de um palco italiano, onde o fingimento vive, onde a ostentação é o consumo e os carrinhos de compra estão cheios, onde os automóveis dizem alguma coisa e onde os apartamentos têm mais vida. É onde a pizza dá o verdadeiro sentido do dia. É quando se come algum sabor após uma hóstia sem sal de uma missa demorada, onde o pai nosso é só de alguns e a mentira é agora e na hora de nossa morte, amém.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Aos que escrevem


Nosso sangue caiu sobre o papel, mas continuamos vivos – agora mais que nunca! Porque essa é a única certeza de que a gente não morre tão cedo. A única certeza de que a gente viverá por uma breve eternidade.

domingo, 5 de julho de 2009

O beijo ou Abril em primavera

A mobilidade da luz percorreu toda a paisagem – quebrou os vazios de uma imagem de vítreos ossos e transformou tudo em carne. Foi por entre as janelas de um prédio, foi por dentro do mundo. Passou por colunas e colunas, pelas colunas, entre espinhas e máquinas, por pedras e costumes. Tudo havia sido rasgado. Havia mudado e não havia mais espaço. Tinha veracidade nas bocas, havia o desejo de ser o que nunca tinha sido – porque não podia ter sido antes, porque não havia sido dada a vontade de viver a intensidade dos mares.

Mas a transformação foi feita. Foi – traçou um corte na previsibilidade do tempo e das coisas. As feridas abertas foram lambidas, as peles fechadas foram cortadas. Eram dores densas, eram cores em toques. Era tudo tão bom! Havia uma coragem de se arriscar – contra o medo, contra tudo e contra todos, porque agora tudo era uma verdade de verdade, ao contrário de antes. Parecia perigoso, mas não: era um grito de libertação (e não mais um segredo).

Tudo fazia parte de um momento – os suspiros, os olhos ardentes, as flores vermelhas de sangue e rosas de amor – tudo era parte de uma hora que jamais seria cicatrizada. Era um rito de passagem, sim. Era a aurora, o desabrochar do que parecia inanimado. Era um canto que, ao mesmo tempo, sendo turbulento, era suave. Era uma varredura sobre o pó de uma sobra escura. Era a luz, era um grito de sol – o dia; o sabor entre os homens. Era o beijo, eram dois. Era a primeira vez.

A liberdade, amor – a que sonhaste!

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Espelho


______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________?

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________!

Porque eu sou tudo aquilo que eu penso ser – o que eu quis e o que eu não vi na frente do meu espelho.

sábado, 20 de junho de 2009

Boca de dente, boca de dentadura

(para Raíssa Pires)
Eu sorria na rua.

Não era felicidade o que eu sentia, era só mais um momento – era uma espécie de percepção aguçada do não-mundo – em que tudo fica mais claro e se pode voar um pouco.

É difícil explicar. Digo: é quase impossível (e dá preguiça só de pensar em tentar). O que eu sei dizer é que é raro – tão raro quanto a vida – porque é algo fora da pele, que não tem limite e que a cabeça não armazena – porque ela se torna pequena diante desse tipo de coisa que é tão grande quanto o que é maior que o universo. Começa do nada e vai até um tempo que não se sabe onde acaba. Quando dura a eternidade, diz-se psicose; quando dura pouco tempo, é, a esse tipo de coisa, referida uma palavra bonita, uma palavra grande de tão pequena e louca de ser tão falada sem ter sido vivida: "sonho".

Isso; eu sonhava e sorria. Sorria por tanto sonhar e sonhava pelo fato de sorrir. Girava na calçada, de um lado ao outro, os pássaros voavam, queria dançar, ouvir Elis Regina, conhecer o Japão – estava tudo muito quente, uma senhora muito magra na calçada, os braços abertos, o sol girava, eu pensava que os gatos cantavam durante a noite, muita gente atravessava a rua, estava flutuando, sentia o barulho das cores, a senhora magra se aproximava, queria subir sobre um palco, rabiscar papéis, abria a boca pra poder comer vento, e a mulher chegava, e eu queria me consumir na minha saliva, e ela se aproximava mais e mais, e mais eu queria comer chocolate, sair pelo mar e deitar e voar e viver e gerar um geral – em todos os cantos do mundo. Queria o impossível – é só o que lembro. E dei de cara já com ela, bem perto de mim. A mulher era mais magra do que eu havia visto no primeiro instante – saia marrom, blusa preta, chinela num pé, cabelos brancos, crespos e amarrados e chinela no outro. Caí numa leve gargalhada – sorri sem maldade alguma, apenas por sorrir um sorriso. Seus lábios, que eram tão corretos paralelos, secos e enrugados, se afastaram aos poucos um do outro. Foi aberto mais um sorriso que refletia a beleza do inexplicável – então realmente olhei pra ela que olhou pra mim realmente então. Se o que sentia era de sonho ou de loucura, eu não sabia, mas ela estava na minha e eu na dela. Não tive medo, não tive nada. Só tive a força de algo que ocorria entre meus dentes e os pinos de sua dentadura. Era uma cumplicidade momentânea.

Pronto: e ela virou-se. Assim, do nada, no meio de tudo. E foi andando em busca de outro mundo. Foi andando, andando, e eu fui sentindo alguma coisa em mim que eu não soube decifrar naquela hora – e que só agora eu soube através do peito: aquilo era a fúria da alegria.

É, eu estava alegre, sim. Por isso fui também. Fui pelo meu lado, mas fui por outro caminho. Não era o de sempre, porque agora eu estava realmente alegre. Sim, eu voltei alegre ao mundo dos homens.


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pra ser Marlene

– Você acha que é fácil, meu bem? Que é só pintar as madeixas todas e pronto? Não, não. Porque ter o cabelo pintado, qualquer uma dessas mulherezinhas aí pode ter. E ser loura não é só ter um cabelo da cor que se espera. Tem que ser é alta. E em todos os sentidos: tem que ter altura, postura, ser branca. Pra ser Marlene tem que ter cara de estrangeira, minha filha. Não tem essa de ficar bronzeada, de ser morena de sol, de ser mulata, brasileira... Em Marlene, não. Tem que parecer alemã, meu bem! Alemã! Tem que ter educação, tem que ser fina. Ter um rosto de pêssego, uma coisa meio de vampira. Claro, e os olhos meio mortos... Bem sedutores. Com a sobrancelha bem fina, arqueada assim. Meio puxada pra cima...

– ...

– Isso! Isso, meu bem! Isso. Assim mesmo, desse jeito... Mas com mais sedução, entende? Tem que fazer jus. É uma sensualidade que deve ser nata, não pode ter essa cara de bicha desenxabida. Tem que ser algo arrebatador. Torturante, voluptuoso. Que dê tesão. E que não seja vulgar. Jamais! Tem que ter classe, meu amor, tem que ter classe. Ser classuda mesmo, de outro nível. Ser uma verdadeira madame. Cruzar as pernas, virar o pescoço, sorrir de canto de boca: isso tudo é necessário. E depois tem que ser feminina, né? Ter feminilidade. Acreditar na força que vem daqui, da vagina. Essas coisas todas. Mesmo que não tenha uma. Tem que ser mulher, meu amor. E de verdade.

– ...

– Quer uma tragada?

– ...

– Ela usava aquelas calças, sabe? Aquelas de cintura alta, de fundo grande. Usava terno e gravata, sapato de homem. Com direito a meias pretas, até. Meias pretas e suspensório! Mas era sempre muito feminina. Ou seja: pra parecer como aquela lá, só uma dama de porte, de pedigree. Tem que ser uma lady, meu amor. E não pode ter erro... Dizem até que ela era meio sapatão, sim. Mas e daí? Continua sendo um exemplo de mulher. Era meio máscula, meio fria, mas era, acima de tudo, uma mulher de verdade. É preciso ter muita boceta pra poder gostar de mulher. Da mesma maneira que você precisa ter muito daquilo pra gostar do que gosta. Você bem sabe, meu bem. E é por isso que você tem que ter uma voz meio grave. Sim, porque ela teve essa voz. E esse será o seu grande trunfo: conseguir ter voz grave, porém de mulher. Mas sem exagero. E saber dar seus agudos, claro. Isso a gente não pode tirar, meu bem, definitivamente. Afinal você tem que ser, além de atriz, uma excelente cantora. É o que eu digo sempre: pra ser uma Marlene Dietrich tem que ter talento de sobra. Sê-la é uma arte, não é só se vestir. Tem que cantar, dançar e ser uma ótima atriz.

– ...

– E fumar! Fume. Fume muito, fume bastante. Fume desesperadamente. E beba bastante uísque. Isso sem se embriagar... Porque é muito chique. Yes! Whiskey and cigarettes! É como o jazz, meu amor: é transcendental. É coisa grã-fina, meu bem, de gente rica. Mas você chega lá. Chega lá, sim.

– ...

– Tô te dizendo, criatura! Chega lá que eu sei. Vai até casar com um homem rico e tudo! Tô te falando, eu sinto... Um moreno bonito, alto, forte... Másculo... Com cara de macho. Meu amor, eu vejo: é de barba e tudo! Barba bem aparada, cabelos negros, olhar profundo. E vai te dar tudo. Vai te dar tudo! Casa, comida, roupa, empregada. Vai te dar até jóia. Tua vida vai dar muita inveja a muita mulher. Eu tô te falando. Veja bem: não tem pra ninguém, aqui só dá você. E em todo canto vai ser você. Você nasceu foi pra brilhar, como uma estrela. E teu homem, meu bem... Escreve: ele vai te dar o mundo! O mundo, meu bem! O mundo! E pra completar, ainda vai comer na tua mão! Escreva o que eu te digo. Meu sentido não falha nunca; nunca falhou e não vai falhar agora. Se Deus quiser, você sai dessa vida... Vou até acender minhas velas pra Oxossi! E também sei que Xangô há de fazer justiça. Oxalá que sim! Só não vai esquecer essa tua velha aqui, tá me ouvindo?

– ...

– Você tem talento! E Marlene Dietrich, meu bem, é isso: é talento puro! Puríssimo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Promessa de vida presente

(para Letícia Trugílio e José Wilson Brito)

Ontem eu fui dormir mais seguro de mim e do mundo. Eu tive a certeza de que eu não dormiria só. Eu tive a grandeza de ter alguém que me velasse, de ter quem me sonhasse, de ter alguém para pensar em mim durante a noite, mesmo estando sozinho em minha cama. Ontem: éramos apenas três – três desligados, três sexuados, três confessando, três apaixonados, malucos, apavorados, três medrosos, três maravilhados, três tão leves, tão pesados, três primaveras, três com tanta fome, três não sendo, três perdidos; mas éramos; éramos três terceiros – três primeiras pessoas.

Foi tudo tão simples, de tanta delicadeza. Foi com gosto de saudade! Porque quando eu fui embora daquele lugar, eu senti que aquilo jamais se repetiria da mesma forma. Talvez venham dias melhores, dias piores, mas como ontem nunca haverá de um dia ser de novo. Risos não se repetem, nem goles, nem carinhos, nem datas. Tudo é único perante a plenitude. E ontem eu me senti pleno – senti-me eterno, senti que minha história havia mudado; eu era mais feliz, eu era mais com cor, eu era mais sábio.

Sim. Ontem eu tive a certeza da sabedoria. Senti necessidade de escrever, mas era tanta euforia que eu não conseguia emanar as idéias. Então me lembrei do que eu já tinha escrito – era o que eu não sabia muito, mas é o que hoje eu chamo de promessa de vida presente. Rebusquei minhas palavras, minhas memórias em caixas, em impressos, dentro das pastas. Eu procurei e eu encontrei. Eu estava completo – reavivei um esboço quando li:
“Ou seja: nós sabemos. Sabemos de nós, sabemos entre si, sabemos de um para o outro. Cada um sabe ao que precede – isso é o que importa: nós nos sabemos para nós. É uma coisa que parte de cada um para cada um, como algo único, como se cada qual fosse um cada único para cada um de nós. Me atrevo a dizer e, sem mais, digo: como uma santíssima trindade totalmente humana (e sem um pingo de divindade).

Um se doa para cada um numa giratória de saber, sem precisar dizer nada. Porque não dizemos nunca – temos vergonha. E não é porque é menos, é porque é mais – e bem mais, ao ponto de a palavra não ter serventia; é bem mais. Mais do que se possa entender. Porque não basta entender. Aliás: não tem que entender. Entender é coisa para tolos. Tem é que saber, porque o saber – esse sim – é para poucos. Saber é o que importa, é o que basta. E o segredo desse saber é simplesmente isto: não saber. Porque do saber não se deve saber, tem é que deixar saber-se sozinho, saber-se apenas”.


Ontem eu fui dormir mais seguro de mim e do mundo. Fui dormir com esperança. Eu senti saudade enquanto estava deitado, então pensei em cada um e senti-me pensado – deixei-me saber.
“Espero que saibam o porquê de que escrevo. Espero que saibam, porque o saber é amar – é nisso que eu acredito, é isso que eu não entendo; é o que eu espero”.
Ontem eu me senti vivo. Ontem eu fui dormir com o gosto do hoje. Porque ontem eu fui dormir com aquele beijo e com aquele abraço.

domingo, 31 de maio de 2009

Dúvida ou Delírio

Há muitos tantos devaneios, entretanto, entre tantos, há o que é verdade. Mas o que é verdade?

domingo, 24 de maio de 2009

Paixões de praxe

Minhas paixões são tão fáceis, tão fáceis de acontecer, que duram apenas semanas, dias, momentos... Às vezes são tantas as que se acumulam que eu acabo por me esquecer das últimas da fila.


Comumente não é nada que me dê febre, nem dor; não é de rolar na sarjeta e, muito menos, algo que me ampute pedaços da alma. A paixão geralmente não me deixa de cama, não me deixa maluco, nem doente, nem cego, nem burro, nem surdo. Quando eu me apaixono – fácil assim –, eu também não faço juras de amor eterno na calada da noite, eu não me descabelo, eu não me machuco. Eu só me ponho a conquistar. Apenas – mesmo sem nunca jurar conseguir. Porque se há um fogo, a brasa tem que ser é alimentada, e a toda hora, com lenha, com mordida na pele. Porque a tentativa não mata. E a conquista é feita no facho, na conversa, na boca, na dança, na saliva, no engasgo do riso, no embaraço das mãos, nos olhares perdidos aos montes.

Mas sofrer por esses afetos de falso intento, por carros de corrida e feijões saltitantes, por cavalos ligeiros e maratonistas de passagem por cá: isso não me é válido. Não é válido sofrer tanto por coisas que passam e só deixam estradas de um nada...

A paixão é quase sempre transitória, é coisa rápida. É um transeunte breve, breve e mortal. Que queima tudo num rastro de segundo e só – deixa apenas pó e vento. E só louco pra entregar o peito assim, tão fácil à fogueira. Porque Joana D’Arc – todo mundo sabe – não teve um fim tão glorioso como o que rezam. Pra quem fica de fora, a fogueira pode ser um ato de bravura, mas pra quem se transforma em cinza, as coisas não são lá de todo heroísmo.

As paixões passam e nós ficamos... E como passam! E como ficamos! E se não passam rápido, por Deus, é que são paixões mais marcantes, mais fortes, mais doces ou mais amargas, ou mais azedas, ou mais salgadas – são de sabores que ficam na boca, gostos que perduram com o tempo... Eu sei que há alguém que me entende, que sabe do que eu estou falando; porque sabe sentir o que eu sinto.

Paixões assim são bárbaras! Até porque isso não me é comum. E por elas – apenas por elas – morrer um pouco vale à pena. E como vale – você bem sabe. Porque tudo o que elas nos causam se torna um pingo de perfeição junto aos nossos ingredientes primitivos. E nós nos tornamos menos gelados, mais belos, menos leves, mais sofridos, mais felizes, transformando-nos em almas dispostas, o que não é de todo mal. Nós nos tornamos nossas próprias dores, conhecemos nosso próprio gosto e recebemos carícias plenas do mais profundo de nós mesmos.

E é tão somente por isso que eu escrevo agora. Por essas nódoas tão gostosas de se manchar! É por essa libido que nos toma em tanto tempo, por esse açoite, por essa impressão angelical que nos marca a pele com as unhas. É só por isso que eu agora me proponho a viver essas linhas compostas por palavras, numa eterna coragem de me transformar em um ser apaixonado – vivendo uma melhor forma de se sofrer: rasgando-me intensamente em carne-viva.