domingo, 30 de agosto de 2009

Melungeon

(para Vitória Germano)
– Tu vai ser meu amigo?

– Como?!

– Se tu vai ser meu amigo... Quero saber.

– Quando?

– Não sei, daqui a uns dez anos. Se eu te ligar pra gente sair, sei lá, pra tomar alguma coisa, ir num barzinho... Passar a noite conversando...

– Que é que tem?

– Tu vai?

– Claro que eu vou. Mas que pergunta é essa?!

– Não, é que eu queria saber... – e também eu queria ter essa certeza, só não perguntei. Talvez por medo da resposta, eu não sei. Não sei mesmo. Só sei que eu tenho segurança nas palavras. Eu tenho segurança e sinto medo quando elas me apontam a indiferença. Mas fiquei feliz, sim. Tão feliz pela pergunta que até perdi a vontade de saber o que estava por vir com o passar dos anos. Porque confiei naquelas palavras. Eu confiei como sempre confio, mas sem aquele pavor de quando a verdade tem gosto ruim. Confiei sem medo porque estava confiando em palavras simples, tão bonitas, calorosas, que não eram frias nem apáticas. Confiei porque não havia indiferença. E fui embora com aquelas de amor, guardadas comigo na superfície das minhas pupilas, onde fui tão feliz. Aqui nos meus olhos e aqui, tão dentro de mim.


segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Confusão ou Título de voltas turvas ou Enleio fundamental ou Nada a declarar ou Estou confuso e não quero explicações ou Espaço em branco e mais nada


e eu não tenho nada a declarar, estou confuso. Só sei que detesto esse tipo de confusão. Também detesto ter que criar explicações pelo simples fato de ter que haver alguma explicação. Mas em mim existe uma fome de objetividade, uma busca que me faz remoer minha confusão à procura de um ponto que explique isso tudo que eu sinto. Eu fico tentando, mas não encontro. É tão desgastante. É tão desagradável. Porque eu nunca acho essa linha de partida. Na verdade, nem os nós no meio dela. Eu não vejo nada além do espaço branco que fica aqui, só na minha cabeça, como se fosse um galpão iluminado, sustentado por colunas de concreto.

Então eu minto, eu invento, eu crio manifestações. É mais fácil do que ir atrás de algo que parece que nunca vai ser achado. E é muito difícil dizer dores sem motivos e alegrias sem causas. Eu não gosto. Não gostam também, me acusam de maluquice. Me acusam porque, quando estou confuso, começo a falar frases soltas. E escrevo coisas soltas também. Começo a ficar parado demais ou eufórico demais. Aí eu grito ou, dependendo do momento, eu calo. Dependendo, eu fico dependente dos ouvidos e dos olhos alheios, porque eu fico querendo que eles me ajudem a entender minha confusão. Mas ninguém consegue ajudar. E eu até entendo. Entendo mais eles do que eu mesmo me entendo Só que não me acostumo.

Eu não queria explicar pra ninguém como eu busco explicações pra minha confusão. Eu só quero escrever pra ter certeza de que meu pensamento existe mesmo. Porque às vezes eu acho que minha cabeça não é feita de realidade, que o que eu faço fecundar dentro dela é impossível de ser parido. Na verdade, eu estou escrevendo isso pra me sentir confortável... Não, na verdade, essa verdade é uma mentira. Ou não: essa mentira é também mentira, porque eu nem sei mais o que é ou não verdade... Vocês também não sabem. Não sabem se o que eu disse é mentira ou é verdade. Eu é que também não sei. Não sei a minha mentira e não sei a minha verdade. Não sei também qual é a de vocês. E nem quero saber. Se não acreditam, tudo bem. Também não quero acreditar. Não quero que acreditem em mim.

Na verdade, eu estou confuso. E acho que eu estou gostando de ser confuso. Acho que odeio ser confuso. Acho que gosto de saber que ninguém sabe se a verdade é de mentira ou se a mentira é de verdade. Acho que não gosto de não saber o que sabem sobre mim. Acho bacana escrever “bacana”, porque sempre quis escrever “bacana”. Acho que gosto de “fecho éclair”. Acho que gosto de chupar botões. Acho uma porcaria tudo o que eu escrevo. Acho que adoro abacate. Acho que odeio Coca-Cola. Acho que quero comer fígado amanhã. Acho que ninguém está acreditando em mim. Acho que todos acreditam em mim. Acho que vou tomar café. Acho que gosto disso. Acho que gosto de querer achar, embora nunca encontre. Acho sacana. Acho que tem quem me ache burro, porque inicio frases com pronome oblíquo átono. Acho bárbaro. Acho que não estou mais entendendo o que eu estou escrevendo, acho que estou dando voltas e mais voltas – e consigo achar isso bonito. E o mais bonito da confusão é a confusão que ela causa.

Me desculpem, eu detesto ter que pedir desculpas – ou inventar alguma desculpa e me desculpar por ela. Mas é que as palavras se perderam em mim e eu não tenho nada a declarar,

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Da felicidade que as vacas têm

– Vacas são felizes?

– São.

– Elas parecem ser tão calmas...

– É, parecem...

– Não, não parecem. Elas são calmas de verdade.

– É...

– A senhora é feliz?!

– Claro que sou.

– Não parece.

– Não pareço?

– Não sei. Sua calma não parece calma de verdade.

– E existe calma de verdade e calma de mentira?

– Não sei.

– ...

– Acho que existe.

– ...

– Mamãe.

– Oi.

– Existe vaca em todo canto do mundo todo?

– Não sei, meu filho. Acho que sim... Talvez. Não sei.

– Elas têm medo de morrer?

– Não sei. Devem ter.

– E por que elas têm tanta calma?

– Não sei...

– ...

– O que foi?

– Por que a gente come vaca, mamãe?

– Também não sei, meu bem.

– E por que a gente bebe leite?

– Eu não sei, meu filho! Não sei! A gente bebe leite porque mandam.

– Quem manda?

– Ninguém... Na verdade a gente come carne e toma leite pra ficar forte. Pronto!

– A senhora é forte?

– ...

– Acho que elas são mais fortes, mamãe. Porque elas são calmas e têm medo de morrer.

– E pessoas fortes têm medo de morrer, por acaso?

– Acho que sim.

– E são calmas?

– São.

– E se a calma delas for de mentira?

– Mas não é.

– Como você sabe?

– Porque vacas não mentem. Bicho nenhum mente.

– E como é que você sabe disso?

– Porque elas são felizes.

– ...

– E só quem mente é as pessoas que têm medo de vida.

– Medo de vida?

– A senhora tem medo?

– O que é medo de vida?

– A senhora tem medo ou não?

– Tenho. Claro que tenho.

– Então a senhora não é feliz?

– Sou!

– Então é medo de morte, mamãe?!

– Não, meu filho. É medo de outras coisas.

– Então a senhora está mentindo!

– Não estou mentindo. Por que sua mãe iria mentir pra você?

– É medo de vida?

– Também não.

– A senhora está mentindo, sim!

– Não. Não estou, não.

– E se está mentindo é porque não é feliz de verdade!

– Claro que não!

– A senhora tem medo de vida. Por isso mente.

– Eu não minto nunca! Eu sou sua mãe.

– E também nem é calma de verdade. É fraca!

– Você não fale assim comigo!

– ...

– Ouviu bem?!

– Desculpa.

– ...

– Mamãe.

– Oi.

– Por que a senhora falou gritando então?

– ...

– A senhora finge?

– O quê?!

– É que a senhora é alegre por fora, mas parece ser triste no coração.

– Isso não existe...

– Existe. A senhora parece forte, mas eu sei que não é.

– Acho que é melhor a gente voltar pro sítio, está ficando escuro, as vacas querem dormir.

– Mamãe?!

– Fala.

– A senhora tem medo de vida?

– De novo esse assunto?

– Tem ou não tem?

– E o que é ter medo de vida?

– Eu não sei.

– Então eu também não sei.

– Sabe. A senhora é adulta.

– E o que é que tem?

– Adulto tem medo de vida.

– E você tem medo de escuro!

– Mas ter medo de escuro é medo de morte.

– ...

– Medo de morte é diferente.

– O que é medo de morte?

– É medo de morrer.

– E medo de vida?

– É medo de ter calma.

– Ninguém tem medo de ter calma, meu filho.

– Tem medo, sim! A senhora parece que tem!

– Eu pareço ou eu tenho?

– Não sei dizer, a senhora mente muito.

– Eu não minto!

– ...

– Então... Quer dizer que as vacas são infelizes?

– Não.

– Mas elas não têm medo?

– Mas é de morte! E de morte é diferente!

– Claro que não.

– Claro que é!

– Diferente como?

– Medo de morte é quem não tem medo de vida.

– E medo de vida, o que é?

– É quem não tem medo de morrer.

– ...

– Quem tem medo de morte é porque deve ser feliz.

– Como você sabe?

– Aprendi com as vacas...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dança profana



Tive fome de dança, tive sede de vida. Quis comer das maravilhas e destruir todas as desgraças. Corri pelos ares, ornei-me em movimentos – e a poeira subiu para além da sola dos meus pés.

O ar se encheu de partículas que se tornaram estrelas! O fosco se fez brilho e as pedras se tornaram almas. Minhas pernas se abriram, minha cabeça se esvaziou de mim e eu fui coberto pelo som do mar. Meus olhos arderam com chamas secas e o vento me invadiu o litoral, o suor do meu peito. Entre uma onda e outra, pelas candeias e cantos da Virgem da Glória, minha boca salivava e eu soltava gritos como os gritos de “evoé!”. Não sabia nem saber o que falar – apenas gritava palavras redondas e invocações incoerentes, sílabas que enroscassem minha língua. Meus lábios sorriam. As narinas arquejavam pelo sopro profano e os dentes trincavam no ar impuro com vontade de tudo. Minha pele agitava os parangolés de Oiticica nos tecidos de Pamplona – e eu excitava em mim a certeza de que meu sangue era vermelho.

Meus braços se partiram e me levaram a dançar. Desdobrei-me para fora no auge do arrebatamento – fui consumido em mim. Fiz-me em minha libido e no silêncio da liberdade recriei a existência. Ultrapassei as linhas do meu corpo – e me tornei também uma estrela num êxtase de carne. Bebi a vida.


sábado, 1 de agosto de 2009

Amor de pudim

(para Letícia Trugílio)

Estava completamente só, sem saber de mais nada. Não havia ninguém que a censurasse por estar sentada ali, de pernas abertas. Preferia pensar sem saber no que estava pensando e olhava fixamente para o Cristo na parede da cozinha. Sua blusa velha estava encharcada de suor na gola e sua calcinha bege e esfolada, mas meio rosa por causa de desbote, cheirava a coisa usada. Os fantasmas, aos poucos, encarnavam em sua cabeça, fazendo-a pensar sobre um tal de um amor acontecido, enquanto tudo se inundava num copo de Coca-Cola com gelos de cubos falsos.

É que sei lá há quanto, aceitou um pedido de namoro. Disse um “sim” seguido de um beijo e fez de uma simples pergunta uma resposta positiva para si. Dedicou-se a ele, fez-se a ele, deu o que era ela a ele – mas só até onde pôde. E eles se gostavam, sim. Mas e o tempo passou e agora ela estava sentada ali, sozinha por preferir estar só. As coisas tinham perdido seu devido brilho e não havia mais valor. As risadas dele agora pareciam irritar ou invés de fazer rir também. Cansava-se só de imaginar ter que vê-lo sorrir. Aquela alegria que era só dele, a cada dia ficava mais dramática, mais trágica ou até cômica aos que, de fora, davam-se ao luxo ou ao direito de gargalhar, como uma platéia de uma irônica comédia de costumes.

Ele era bom demais, doce demais, amável demais. Não discordava nunca, era sempre disposto, sempre entregue – e esse era o problema de tudo. Não havia brigas ou cortes, nem cicatrizes de machados e facas. Não havia nada. Tudo estava ali, esperando traças. Era como um pudim molenga e sem doce, desonerando apenas por dentro, feito com ovos gorados e coberto por um mel queimado e meio amargo. Já estava virando uma peça de museu intacta – e não havia motivo para destruir uma obra tão bela aos mundos alheios. Se houvesse um rompimento – Deus sabe – a culpa seria dada imediatamente por não haver motivos aparentes. Seria injustiça, seria maldade com ele que, justamente, era tão bom.

Ela decidiu então ficar como uma múmia, apodrecida apenas por dentro dos linhos. Assim era melhor. Não haveria a culpa por tê-lo largado, não haveria vítimas nem fraturas expostas, e os carrascos não teriam que sujar as mãos de sangue. Era mais bonito também ser um túmulo glorioso. Um sarcófago que, por fora, era ouro ornado por pedrarias e, por dentro, era um cadáver dissecado, uma carne podre sendo comida entre lençóis empoeirados. Lençóis sem graça, sem vida. Como tudo havia se tornado: trivial demais – doce como pó de café solúvel na língua. Bege como a calcinha.