quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Ode ao grande Pássaro Azul do Pedro Gabriel infante

Um pássaro grande azul canta perto aqui bem longe. Estou por lá no meio do campo das flores, bem junto pertinho ao menino que dorme marfim. Sinto pedrinhas em baixo dos pés. Um vento seco alaranjado de luz povoa todo esse espaço. As flores dançam. As nuvens passam.

Carrego logo embaixo dos olhos duas grandes borras de café. Minhas lágrimas são escuras e requentadas, descem líquidas, não se instalam, mas descem, descem, molham o chão.

Tenho febre. Canto elegias. Rezo ao Jesus Menino. Arvora sobre mim alguns frutos, mas estão secos. Mas estou tão triste. Minhas folhas não me cobrem nem me protegem do frio. O sol é quente.

Mas rezo. À Mãezinha de Deus, um som de violino, bem fino, talvez na grande garganta do pássaro azul. Rezo, porque o menino tem os pés descalços e as mãos branquinhas de cera. E seus lábios são leporinos, cortados, têm o peso das palavras dos anjos. Ele é pequenino.

Rezo cantando, junto ao pássaro, um som de violino.

Toco meus dedos em seus dedinhos vazios e os lábios cortados, leporinos, incompreensíveis. Ali mesmo, no meio do campo das flores, têm muitas e é impossível dizer: têm róseas amarelas brancas azuis amarelas de novo. Tantas que é impossível dizer cada qual tem sua cor.

Um pássaro grande azul canta perto aqui bem longe. E a sua flor é também azul, mas marinho e marrom. Toco meus dedos em seus dedinhos, toco em seus lábios leporinos que carregam uma cruz.

Rezo um canto, muito bem fino. O menino dorme. Ele é azul, marinho e marrom.

Cada flor tem seu pássaro. Aquele grande azul embala a flor-menino.

Toco em seus dedinhos. Meus dedos em seus olhinhos.

Seus lábios são leporinos, cortados, têm o peso das palavras dos anjos.

Percebo o quão miúdo se pode ser, diante do pássaro grande de garganta e canto azul.

Diante do bebê de marfim em seu caixãozinho, percebo o quão miúdo se pode ser.

***

Eu sou tão pequenino.

Quando eu morrer, quero também um pássaro de uma cor minha por lá no meio do campo das flores todas as cores. Percebo o quão melódio será o canto do meu, que será vermelho.

***

Um pássaro grande vermelho canta longe aqui bem perto.

Minhas lágrimas escuras descem.

Tenho febre.

O menino-azul-marinho-marrom repousa embalado.

O sol é quente.


sábado, 20 de agosto de 2011

Babilônia Sabaoth



É esse o enleio da minha salvação:

Eu me escondo, sim, ainda, às vezes ainda durante o dia, onde eu devo mesmo, diante do mundo, realmente tenho mesmo que realmente me esconder e ser apenas dentro. Mas antes.

Mas antes – agora preciso contar sobre o antes – eu era feito apenas de sol e dia. Dias e dias, sóis feitos de sol negro, dias escuros. “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis”: não pelo lado esquerdo, não pelo lado direito, seguir em frente, seguir em frente, nunca voltar atrás, nunca amar, não ao beijo, não a mim mesmo, não a mim, não para mim, não - o gosto insosso de uma hóstia insossa, mal assada, eu mal cozido, eu mal sabia, eu mal falava, mal podia, Deus! Mas hoje. Mas agora. Mas desde que anoiteceu uma lua clara sobre meus olhos escuros.

Hoje. Falo: hoje sou livre e me desgarrei. À noite, quando estou só e então só posso ser, sou-me. Encontrei os meus! Desgarrei-me do fim e me agarrei às minhas-tuas entranhas, Senhor! “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem”. A morte nem mais existe, nada importa, tudo importa, tudo, tudo, tudo importa, bate à porta, na minha hora, na minha porta, na minha casa, minha mesa, minha cama, minha gana, minha, minha, meu Deus! Meu, por amor a ti, a mim, em nós, por nós, fugi, fugi-me para além de mim e hoje sou, deixei-me escapar, deixei-me fluir, hoje a noite revigora, dá força às minhas idéias bambas sobre céu e inferno. Vivo santo, meu corpo é vosso, nosso, flutua nas nuvens sem saber de pecado. É santo! “Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Pleni sunt cæli et terra gloria tua. Hosanna in excelsis”.

Cordeiro de Deus, vivo e presente em mim, me dança, me defende, projete, patrocina minha fuga. Os meus estão comigo. Não sou mais como quando eu tive meus catorze anos. Certo que ainda cedo, desisto diante de ontem. Eu me escondo, sim, ainda, às vezes ainda durante o dia, onde eu devo mesmo, diante do mundo, realmente tenho mesmo que realmente me esconder e ser apenas dentro. Mas Deus cá está.

Deus, ao meu lado, me fortifica e me fortalece, me faz dançar, deixa-me livre, me faz livre e me faz dançar, me faz dançar, livremente, uma profana, uma santa, uma santa e santa-profana. É esse o enleio da minha salvação – tomo hóstia, carne e sangue, gosto do gosto, gosto pelo pão bem feito, farto, bem digo, dito, bendigo aos meus, bendito, Sacro Deus.

"Hosanna in excelsis”.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Caiu

Caio caiu.

Caio caiu cedinho, de manhã, antes de cair qualquer coisa.

Depois, Caio caia muito. Caia como os outros cairiam, como eu depois caí.

Como eu também, mais tarde, logo após a primeira queda, cairia como Caio – caio e até cairia de novo –, Caio veio e caiu antes que nós todos pudéssemos ter a chance de cair. Caio foi o primeiro a cair. Antes mesmo de cair a primeira queda. Caio foi o primeiro dos muitos, o primeiro de nós. Com muito, ele caiu.

Caio caiu tanto que se acostumou com a queda. Depois de Caio se acostumar, eu, toda vez que caio, como Caio, também me conformo. E todos os muitos que depois também caíram como Caio caiu, também se acostumaram como Caio e, como Caio, que não achava bom cair, mas que já tinha se acostumado, se conformaram.

Até que em Caio, antes de ele cair de novo, caiu a ficha: ele só caía. E Caio resolveu nunca mais cair, porque seu joelho já estava um tanto machucado. E Caio não levantou. Ficou deitado no chão, para nunca mais ficar em pé e, assim, nunca mais cair.

E Caio nunca mais caiu.

Até cair de novo, não mais no chão – Caio, antes que o sol caísse, cairia em si.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Astronauta 3000


Fugirei de casa. Vou sair andando leve, na rua, correndo vez por outra. Vou cair na pista, eu sei. Vou cair em mim e em mais ninguém. Continuarei ariano, mas serei mais azul que vermelho – como eu não já sou, porque sou amarelo. E não carregarei nas costas nenhum retrato.

Se eu precisar pegar carona, subo até em boléia de caminhão. Apareço vivo, noutro canto. Outro canto; canto de novo, mas outra música, outra canção. Amanhã: um novo dia, nova manhã – e todos os clichês: não sofro mais pelo passado. Deixo tudo em casa, ancorado, mas lá, só por lá, eu prometo. Se eu precisar voltar, vai ser uma pena, porque já me perdi no caminho, mesmo sem ainda ir – os passarinhos comeram todos os rastros, igual como fizeram com João e Maria, igual como fazem, agora como fazem com mim.

Serei assim, como um pôr-do-sol que eles não viram. E de qualquer jeito o meu cartão telefônico já estourou. Não ligarei pra casa. Serei forte. Esquecerei.

Vejo o amanhã: tirei meus sapatos, já. Meus bolsos estarão furados. Não tenho remendo. Nem linha nem agulha. Nem língua que reclame. Nem pés de Curupira. Nem nada que me faça andar pra trás. Não volto.

Sou forte – esqueci.

Vejo: estou surdo. Sou tão forte que depois sou o amanhã. Sou tipo último tipo, de vestido de paetês – a loucura me pertence.

A loucura me pertence – encontro que o amanhã é mesmo meu. As cidades não existirão. E será meu o meu tempo. Mas amanhã.

Agora vejo: e sei que tão cedo eu não vou, pelo menos espero. Tenho medo. Não quero tão cedo. Não tenho força. Eu não fui. Ir – outros dizem que é como viajar. Ainda não, eu fico. Fico em casa, tenho sapatos. Tenho ossos – muitos ainda pra roer –, não quero largar agora. Tenho linha, agulha, remendo. Tenho o número de casa, meu DDD, meu telefone. Me reencontro. (Renasci.)

Em 3000 já não estarei – terei 3019 anos, pelo que dizem os homens. E eu terei virado semente pra depois de amanhã, assim espero.

Mas amanhã é que eu parto: pegarei minhas malas e as levarei, talvez vazias.

Os homens chamam isso de morte.

Mas amanhã.

***

Um dia eu subo em uma nave espacial. Amanhã é que quero ser astronauta.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Permissão

Nasci para amar.

Fui feito assim, amei desde o princípio, dei-me todo, o meu corpo, a minha alma, a minha casa. Fiz do amor a minha pátria. E fiz dos meus sonhos de amor os meus filhos que não nasceram e que talvez nunca venham a ser.

Gastei meu tempo, muito com lágrimas. Me afoguei nelas tantos dias. Morri, confesso. Às vezes afogado. Mas foi no amor que eu nasci, me inventei. Foi amando que eu amei. Ariano, vindo em 1992, feito em 1991, vivo até 2010 pelo menos – quanto ao futuro de um amor.

Porque foi no amor que eu escrevi o meu nome, o meu lábio, a minha graça de ser.

Foi no amor a canção.

Foi no amor os meus 16 anos.

Foi no amor os meus amores.

Foi no amor a mamãe e o inho. Os meus avós, os meus bisavós, os meus amigos.

Foi no amor o meu peito todo, todo, todo aberto.

Foi nele também meus inimigos, minhas paixões de ódio, minhas notas baixas em matemática.

Foi no amor o meu primeiro passo.

Foi no amor a água da chuva escorrendo pelos meus cabelos, minha febre em 40 graus.

Foi no amor a queda do meu primeiro dente de leite.

Foi também nele os meus pés tortos.

E foi no amor a minha cicatriz no braço direito.

Também foi no amor a minha primeira punheta.

Foi no amor o meu primeiro beijo e a minha primeira experiência.

Foi no amor o meu primeiro sexo e também a minha primeira declaração de amor – amor.

Foi no amor a minha primeira saída pela porta dos fundos, a minha primeira fuga.

Foi no amor a minha luta e a minha dança.

Foi no amor minha primeira descoberta, a mais bonita, a mais bonita, a mais.

Foi no amor a minha primeira tapa.

E foi no amor o meu primeiro homem e minha primeira mulher.

Foi no amor a minha fantasia.

Foi no amor a minha tatuagem invisível e a minha mentira.

Foi no amor o meu tesão.

Foi nele o meu gosto por chocolate.

Foi nele que me cortei em vidros.

Foi no amor que eu me vi no espelho, sem espelho algum.

Foi nele a minha crença.

Foi no amor que eu me entreguei.

Foi no amor os meus dias de escola.

Foi no amor os meus natais.

Foi no amor o meu ano de 2002.

E foi também nele o meu sorriso, que foi feito puramente em sua graça.

Foi no amor o sol.

Foi no amor a minha cabeça.

Foi no amor, também, meu primeiro tchau. E não será também o último, eu sei. – Aos que têm de ir, digo que se querem ir, que vão... Aos que ficam, tenho é o amor. E um peito ferido, mas tenho abrigo do frio, sombra do calor.

Porque foi no amor o medo que hoje eu tenho. Medo, muito medo de morrer. – Mas eu sei que se eu morrer será com todo o amor do mundo em mim.

Porque também são no amor as minhas lágrimas em meus travesseiros, desde meu primeiro grito de fome.

Amar. – Uma imagem: um grito de vida, um copo de leite, um sol na minha mesa de manhã depois de um banho de chuva com o amor ao lado... A chuva, o sol, o sol, a chuva junto. Abundância. Sábado pela manhã. Vontade de viver, muita. De sofrer, até. De amar muito, amar muito, amar. Vontade de viver, tanta! Vontade de sair gritando na rua que estar vivo é o maior barato.

Foi no amor a minha morte.

É nele a minha sorte e a minha glória, se houver.

Amar – amor ao meu lado – quando o sol nascer de novo.