segunda-feira, 29 de junho de 2009

Espelho


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Porque eu sou tudo aquilo que eu penso ser – o que eu quis e o que eu não vi na frente do meu espelho.

sábado, 20 de junho de 2009

Boca de dente, boca de dentadura

(para Raíssa Pires)
Eu sorria na rua.

Não era felicidade o que eu sentia, era só mais um momento – era uma espécie de percepção aguçada do não-mundo – em que tudo fica mais claro e se pode voar um pouco.

É difícil explicar. Digo: é quase impossível (e dá preguiça só de pensar em tentar). O que eu sei dizer é que é raro – tão raro quanto a vida – porque é algo fora da pele, que não tem limite e que a cabeça não armazena – porque ela se torna pequena diante desse tipo de coisa que é tão grande quanto o que é maior que o universo. Começa do nada e vai até um tempo que não se sabe onde acaba. Quando dura a eternidade, diz-se psicose; quando dura pouco tempo, é, a esse tipo de coisa, referida uma palavra bonita, uma palavra grande de tão pequena e louca de ser tão falada sem ter sido vivida: "sonho".

Isso; eu sonhava e sorria. Sorria por tanto sonhar e sonhava pelo fato de sorrir. Girava na calçada, de um lado ao outro, os pássaros voavam, queria dançar, ouvir Elis Regina, conhecer o Japão – estava tudo muito quente, uma senhora muito magra na calçada, os braços abertos, o sol girava, eu pensava que os gatos cantavam durante a noite, muita gente atravessava a rua, estava flutuando, sentia o barulho das cores, a senhora magra se aproximava, queria subir sobre um palco, rabiscar papéis, abria a boca pra poder comer vento, e a mulher chegava, e eu queria me consumir na minha saliva, e ela se aproximava mais e mais, e mais eu queria comer chocolate, sair pelo mar e deitar e voar e viver e gerar um geral – em todos os cantos do mundo. Queria o impossível – é só o que lembro. E dei de cara já com ela, bem perto de mim. A mulher era mais magra do que eu havia visto no primeiro instante – saia marrom, blusa preta, chinela num pé, cabelos brancos, crespos e amarrados e chinela no outro. Caí numa leve gargalhada – sorri sem maldade alguma, apenas por sorrir um sorriso. Seus lábios, que eram tão corretos paralelos, secos e enrugados, se afastaram aos poucos um do outro. Foi aberto mais um sorriso que refletia a beleza do inexplicável – então realmente olhei pra ela que olhou pra mim realmente então. Se o que sentia era de sonho ou de loucura, eu não sabia, mas ela estava na minha e eu na dela. Não tive medo, não tive nada. Só tive a força de algo que ocorria entre meus dentes e os pinos de sua dentadura. Era uma cumplicidade momentânea.

Pronto: e ela virou-se. Assim, do nada, no meio de tudo. E foi andando em busca de outro mundo. Foi andando, andando, e eu fui sentindo alguma coisa em mim que eu não soube decifrar naquela hora – e que só agora eu soube através do peito: aquilo era a fúria da alegria.

É, eu estava alegre, sim. Por isso fui também. Fui pelo meu lado, mas fui por outro caminho. Não era o de sempre, porque agora eu estava realmente alegre. Sim, eu voltei alegre ao mundo dos homens.


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pra ser Marlene

– Você acha que é fácil, meu bem? Que é só pintar as madeixas todas e pronto? Não, não. Porque ter o cabelo pintado, qualquer uma dessas mulherezinhas aí pode ter. E ser loura não é só ter um cabelo da cor que se espera. Tem que ser é alta. E em todos os sentidos: tem que ter altura, postura, ser branca. Pra ser Marlene tem que ter cara de estrangeira, minha filha. Não tem essa de ficar bronzeada, de ser morena de sol, de ser mulata, brasileira... Em Marlene, não. Tem que parecer alemã, meu bem! Alemã! Tem que ter educação, tem que ser fina. Ter um rosto de pêssego, uma coisa meio de vampira. Claro, e os olhos meio mortos... Bem sedutores. Com a sobrancelha bem fina, arqueada assim. Meio puxada pra cima...

– ...

– Isso! Isso, meu bem! Isso. Assim mesmo, desse jeito... Mas com mais sedução, entende? Tem que fazer jus. É uma sensualidade que deve ser nata, não pode ter essa cara de bicha desenxabida. Tem que ser algo arrebatador. Torturante, voluptuoso. Que dê tesão. E que não seja vulgar. Jamais! Tem que ter classe, meu amor, tem que ter classe. Ser classuda mesmo, de outro nível. Ser uma verdadeira madame. Cruzar as pernas, virar o pescoço, sorrir de canto de boca: isso tudo é necessário. E depois tem que ser feminina, né? Ter feminilidade. Acreditar na força que vem daqui, da vagina. Essas coisas todas. Mesmo que não tenha uma. Tem que ser mulher, meu amor. E de verdade.

– ...

– Quer uma tragada?

– ...

– Ela usava aquelas calças, sabe? Aquelas de cintura alta, de fundo grande. Usava terno e gravata, sapato de homem. Com direito a meias pretas, até. Meias pretas e suspensório! Mas era sempre muito feminina. Ou seja: pra parecer como aquela lá, só uma dama de porte, de pedigree. Tem que ser uma lady, meu amor. E não pode ter erro... Dizem até que ela era meio sapatão, sim. Mas e daí? Continua sendo um exemplo de mulher. Era meio máscula, meio fria, mas era, acima de tudo, uma mulher de verdade. É preciso ter muita boceta pra poder gostar de mulher. Da mesma maneira que você precisa ter muito daquilo pra gostar do que gosta. Você bem sabe, meu bem. E é por isso que você tem que ter uma voz meio grave. Sim, porque ela teve essa voz. E esse será o seu grande trunfo: conseguir ter voz grave, porém de mulher. Mas sem exagero. E saber dar seus agudos, claro. Isso a gente não pode tirar, meu bem, definitivamente. Afinal você tem que ser, além de atriz, uma excelente cantora. É o que eu digo sempre: pra ser uma Marlene Dietrich tem que ter talento de sobra. Sê-la é uma arte, não é só se vestir. Tem que cantar, dançar e ser uma ótima atriz.

– ...

– E fumar! Fume. Fume muito, fume bastante. Fume desesperadamente. E beba bastante uísque. Isso sem se embriagar... Porque é muito chique. Yes! Whiskey and cigarettes! É como o jazz, meu amor: é transcendental. É coisa grã-fina, meu bem, de gente rica. Mas você chega lá. Chega lá, sim.

– ...

– Tô te dizendo, criatura! Chega lá que eu sei. Vai até casar com um homem rico e tudo! Tô te falando, eu sinto... Um moreno bonito, alto, forte... Másculo... Com cara de macho. Meu amor, eu vejo: é de barba e tudo! Barba bem aparada, cabelos negros, olhar profundo. E vai te dar tudo. Vai te dar tudo! Casa, comida, roupa, empregada. Vai te dar até jóia. Tua vida vai dar muita inveja a muita mulher. Eu tô te falando. Veja bem: não tem pra ninguém, aqui só dá você. E em todo canto vai ser você. Você nasceu foi pra brilhar, como uma estrela. E teu homem, meu bem... Escreve: ele vai te dar o mundo! O mundo, meu bem! O mundo! E pra completar, ainda vai comer na tua mão! Escreva o que eu te digo. Meu sentido não falha nunca; nunca falhou e não vai falhar agora. Se Deus quiser, você sai dessa vida... Vou até acender minhas velas pra Oxossi! E também sei que Xangô há de fazer justiça. Oxalá que sim! Só não vai esquecer essa tua velha aqui, tá me ouvindo?

– ...

– Você tem talento! E Marlene Dietrich, meu bem, é isso: é talento puro! Puríssimo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Promessa de vida presente

(para Letícia Trugílio e José Wilson Brito)

Ontem eu fui dormir mais seguro de mim e do mundo. Eu tive a certeza de que eu não dormiria só. Eu tive a grandeza de ter alguém que me velasse, de ter quem me sonhasse, de ter alguém para pensar em mim durante a noite, mesmo estando sozinho em minha cama. Ontem: éramos apenas três – três desligados, três sexuados, três confessando, três apaixonados, malucos, apavorados, três medrosos, três maravilhados, três tão leves, tão pesados, três primaveras, três com tanta fome, três não sendo, três perdidos; mas éramos; éramos três terceiros – três primeiras pessoas.

Foi tudo tão simples, de tanta delicadeza. Foi com gosto de saudade! Porque quando eu fui embora daquele lugar, eu senti que aquilo jamais se repetiria da mesma forma. Talvez venham dias melhores, dias piores, mas como ontem nunca haverá de um dia ser de novo. Risos não se repetem, nem goles, nem carinhos, nem datas. Tudo é único perante a plenitude. E ontem eu me senti pleno – senti-me eterno, senti que minha história havia mudado; eu era mais feliz, eu era mais com cor, eu era mais sábio.

Sim. Ontem eu tive a certeza da sabedoria. Senti necessidade de escrever, mas era tanta euforia que eu não conseguia emanar as idéias. Então me lembrei do que eu já tinha escrito – era o que eu não sabia muito, mas é o que hoje eu chamo de promessa de vida presente. Rebusquei minhas palavras, minhas memórias em caixas, em impressos, dentro das pastas. Eu procurei e eu encontrei. Eu estava completo – reavivei um esboço quando li:
“Ou seja: nós sabemos. Sabemos de nós, sabemos entre si, sabemos de um para o outro. Cada um sabe ao que precede – isso é o que importa: nós nos sabemos para nós. É uma coisa que parte de cada um para cada um, como algo único, como se cada qual fosse um cada único para cada um de nós. Me atrevo a dizer e, sem mais, digo: como uma santíssima trindade totalmente humana (e sem um pingo de divindade).

Um se doa para cada um numa giratória de saber, sem precisar dizer nada. Porque não dizemos nunca – temos vergonha. E não é porque é menos, é porque é mais – e bem mais, ao ponto de a palavra não ter serventia; é bem mais. Mais do que se possa entender. Porque não basta entender. Aliás: não tem que entender. Entender é coisa para tolos. Tem é que saber, porque o saber – esse sim – é para poucos. Saber é o que importa, é o que basta. E o segredo desse saber é simplesmente isto: não saber. Porque do saber não se deve saber, tem é que deixar saber-se sozinho, saber-se apenas”.


Ontem eu fui dormir mais seguro de mim e do mundo. Fui dormir com esperança. Eu senti saudade enquanto estava deitado, então pensei em cada um e senti-me pensado – deixei-me saber.
“Espero que saibam o porquê de que escrevo. Espero que saibam, porque o saber é amar – é nisso que eu acredito, é isso que eu não entendo; é o que eu espero”.
Ontem eu me senti vivo. Ontem eu fui dormir com o gosto do hoje. Porque ontem eu fui dormir com aquele beijo e com aquele abraço.