sábado, 20 de junho de 2009

Boca de dente, boca de dentadura

(para Raíssa Pires)
Eu sorria na rua.

Não era felicidade o que eu sentia, era só mais um momento – era uma espécie de percepção aguçada do não-mundo – em que tudo fica mais claro e se pode voar um pouco.

É difícil explicar. Digo: é quase impossível (e dá preguiça só de pensar em tentar). O que eu sei dizer é que é raro – tão raro quanto a vida – porque é algo fora da pele, que não tem limite e que a cabeça não armazena – porque ela se torna pequena diante desse tipo de coisa que é tão grande quanto o que é maior que o universo. Começa do nada e vai até um tempo que não se sabe onde acaba. Quando dura a eternidade, diz-se psicose; quando dura pouco tempo, é, a esse tipo de coisa, referida uma palavra bonita, uma palavra grande de tão pequena e louca de ser tão falada sem ter sido vivida: "sonho".

Isso; eu sonhava e sorria. Sorria por tanto sonhar e sonhava pelo fato de sorrir. Girava na calçada, de um lado ao outro, os pássaros voavam, queria dançar, ouvir Elis Regina, conhecer o Japão – estava tudo muito quente, uma senhora muito magra na calçada, os braços abertos, o sol girava, eu pensava que os gatos cantavam durante a noite, muita gente atravessava a rua, estava flutuando, sentia o barulho das cores, a senhora magra se aproximava, queria subir sobre um palco, rabiscar papéis, abria a boca pra poder comer vento, e a mulher chegava, e eu queria me consumir na minha saliva, e ela se aproximava mais e mais, e mais eu queria comer chocolate, sair pelo mar e deitar e voar e viver e gerar um geral – em todos os cantos do mundo. Queria o impossível – é só o que lembro. E dei de cara já com ela, bem perto de mim. A mulher era mais magra do que eu havia visto no primeiro instante – saia marrom, blusa preta, chinela num pé, cabelos brancos, crespos e amarrados e chinela no outro. Caí numa leve gargalhada – sorri sem maldade alguma, apenas por sorrir um sorriso. Seus lábios, que eram tão corretos paralelos, secos e enrugados, se afastaram aos poucos um do outro. Foi aberto mais um sorriso que refletia a beleza do inexplicável – então realmente olhei pra ela que olhou pra mim realmente então. Se o que sentia era de sonho ou de loucura, eu não sabia, mas ela estava na minha e eu na dela. Não tive medo, não tive nada. Só tive a força de algo que ocorria entre meus dentes e os pinos de sua dentadura. Era uma cumplicidade momentânea.

Pronto: e ela virou-se. Assim, do nada, no meio de tudo. E foi andando em busca de outro mundo. Foi andando, andando, e eu fui sentindo alguma coisa em mim que eu não soube decifrar naquela hora – e que só agora eu soube através do peito: aquilo era a fúria da alegria.

É, eu estava alegre, sim. Por isso fui também. Fui pelo meu lado, mas fui por outro caminho. Não era o de sempre, porque agora eu estava realmente alegre. Sim, eu voltei alegre ao mundo dos homens.


3 comentários:

  1. Cara, eu adorei esse post. Os detalhes da descrição.
    Indentifiquei-me muito com a parte de até preguiça pensar em tentar descrever o que só a gente sente.
    Mas não se lamente pelo que viveu ter sido APENAS percepção aguçada do não-mundo, porque como você disso, isso permite você voar. E mesmo que seja momentaneo é bom. É bom sonhar, é bom se iludir, mesmo que soframos depois, é bom VIVER.
    Gostei muito daqui.

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  2. O sorriso é algo sagrado, sorrir sem um motivo aparente está quase virando um ritual para mim. Me eleva, me leva aquela tal de plenitude. E nao sei pq, simplesmente vem, sem hora marcada, sem dia, nem data. E do mesmo jeito que ele chega sem aviso, ele vai sem aviso. Mas eu acho é bom, pq de vez em quando ele me paga de surpresa. Aquele safado! As vezes quero nem rir, mas não dá p segurar, aí ele vem com tudo, vem junto com a gargalhada...
    Imagino como deve ter sido bom compartilhar o sorriso. E é assim mesmo, as pessoas tem liberdade para chegar e partir... Do mesmo jeito que a senhora magra chegou e partiu e te deixu um sorriso, eu aqui deixo o meu.
    obrigada grande poeta!

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  3. É de um imaterialismo palpável q só o existencialismo tem..
    vejo mto existencialismo em ti.

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