quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um de dois


– O seu problema, sabe qual é?

– Qual?

– Não sei te explicar.

– Como assim não sabe?

– Não sei, cara. Não sei e pronto. Não sou obrigado a saber.

– E eu sou?!

– Mas é claro que é.

– Não, eu também não sou.

– É! É, sim!

– Não, não sou.

– É!

– Por quê?

– Como assim? Você ainda quer saber o porquê? Não tá na cara?

– Não.

– Como assim, cara? Tá na cara, sim. Bem na tua cara.

– Eu devo ser cego, então.

– Ou burro.

– Não, isso eu não sou.

– Inteligente é que não é.

– Se for pra ser inteligente como você, que sabe tudo sobre tudo, mas não sabe nada de nada...

– Como assim?

– Ah, você também não sabe? Então eu também não sei.

– Por que é que você tem que ser assim, hein?

– Assim como?

– Assim! Do jeito que você é.

– Deve ser porque eu sou eu.

– E eu sou eu, né?

– É. E você é você.

– É.

– E, graças a Deus, eu e você somos diferentes.

– Talvez.

– Talvez?

– Talvez, sim.

– Como assim? Não entendi.

– Você nunca entende.

– Por favor, me explica...

– Não quero.

– Você não acha que nós somos diferentes?

– Acho.

– E por que o teu “talvez”?

– Por causa do “graças a Deus”.

– E você acha que é graças a quem? Ao diabo?

– Só se ele for você.

– Eu não. Você, se for.

– Só se ele for eu ou você, porque Deus não tem nada com isso.

– A não ser que eu seja Deus.

– A não ser que você ou eu seja Deus!

– Mas você não é...

– Muito menos você. Você que não é mesmo.

– E você tá mais pra diabo.

– Eu não tô pra nada. Nem pra Virgem Maria.

– Mas pra Deus se incluiu.

– Não me incluí. Supus.

– Por quê?

– Pra dizer que ninguém tem nada a ver com o que eu ou você é.

– Ninguém?

– Só se outro alguém for eu ou você.

– Deus ou o diabo?

– Ou a Virgem Maria.

– E como é que você sabe?

– O quê?

– Que ninguém tem nada a ver com a gente?

– Eu não sei.

– Não?

– Não... Eu sinto.

– Deu pra ser sensitivo agora também?

– E você? Deu pra bancar o imbecil?

– Não. Não dei pra bancar, não.

– Porque imbecil é o que você é sempre, né?

– Porra, cara... Pára de ser desse jeito.

– Desse jeito como?

– Desse teu jeito, cara. Pára de ser escroto!

– Escroto?

– Não, eu também não sei explicar...

– Não sabe explicar o teu “escroto”?

– Não.

– Deve ser porque nós somos assim, diferentes...

– É... Talvez.

– Talvez?

– Talvez, sim. Talvez, graças a Deus.

– Ou graças a nós.

– De jeito nenhum!

– Como não? Graças a nós, sim!

– Não, não. Graças a mim e graças a você, que somos diferentes.

– Realmente...

– Melhor: graças a você e a mim, que não sabemos da vida um do outro.

– Graças a Deus!

– O quê?

– Que nós não sabemos um do outro.

– Talvez.

– Talvez?

– É. Talvez. Graças a Deus.

– Ou a nós.

– Graças a Deus.

– É... Graças!

11 comentários:

  1. Gostei do sketch. E me fez lembrar um provérbio indígena que carrego sempre em minha mente:

    "Grande espírito, ajuda-me a não julgar ninguém sem antes ter caminhado meia lua com seus sapatos."

    A gente não sabe mesmo da vida do outro. Graças. =) Beijo carinhoso, saudade de ver vc por aqui. Feliz Natal! Que seu dia seja tão iluminado quanto o seu pensamento. =*

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  2. Já quero interpretar essa esquete [2]!
    Fui lendo e visualizando as possibilidades de encenação que teus monólogos acerca do "habitual pouco notado pela maioria" se projetam em minha mente.
    Sempre é bom ler-te!

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  3. Já quero interpretar essa esquete [3]
    Pra mim não passa de uma mera briga de um casal complexado.

    Abraço.

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  4. Não. É diálogo.
    É um dom expresso.
    É barulho mais bonito que som de anjo,
    é palavra e palavra;
    é diálogo.
    (:

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  5. Divinamente bem expresso a confusão de se saber que não se conhece nem a si próprio quanto menos a outrém e o fato de SEMPRE se afirmar o contrário.
    Três letras pra vc: UAU.

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  6. que bom que não sou só eu que dicuto comigo mesma.......

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