quinta-feira, 1 de abril de 2010

Talvez um Cristo e sua paixão

Um disparo.

E um medo que me atingiu na frente, no peito, bem no meio. Derreti no chão, ali dentro, no ônibus. Me aliei àquele outro corpo, estendido na calçada – a primeira queda de Cristo –, e o sangue vermelho-escuro escorreu quase-preto pro asfalto. E a calçada, as buzinas, um tanto assim de gente. Vozes. Gritos. Pessoas correndo e um agudo no ouvido.

Outro disparo, o segundo.

Um zunido. O céu que se fechava. Uma mulher gritou desesperada e os meus ossos afundaram o piso de lata. Minha cabeça – meu Deus! O meu medo. E os meus olhos viram o abismo e imaginaram a carne fresca estendida. Meu estômago gritou como um raio. Parecia um nó em mim. A vontade de vomitar e um frio que descia pela mão feita em suor. Meus pés dormentes, meu sangue encostado, gelado, sem circular. Meus olhos cerrados. “Ave Maria”, cheio de tudo. Cheio da minha noite sem dormir. Saudade da vida. Saudade de casa. Vontade da cama. De abraçar o meu pai. Vontade assim, de querer continuar. De querer existir. De sumir. De abraçar Cristo, como a mãe de tudo. Como a mãe deles. Ou como o próprio Cristo se abraçaria.

Terceiro, quase um quarto.

Qual idade? Qual signo? Qual porta? Que chave, qual destino? Um número? Mais um, menos um. Mais um, menos vivo. Menos, mais – quem se importa? No meio da Treze de Maio, nove da manhã, um outro assassinado. Mais sangue, mais ossos. Menos Alices, mais medo, mais medo em mim. Mais medo. Mais medo de me arriscar. O medo de parir. Medo de pôr gente no mundo. E da desgraça de um possível adeus.

Um último.

E os dois ladrões crucificados. O ônibus dobrou na esquina. Continuei deitado. O corpo estava lá, morto, no meio de tudo, com quatro balas na cabeça. A mulher falava histericamente, sem parar. Meu vidro resistiu. Minha cabeça ali, meu corpo inteiro. Meu sonho de vitória. A morte do outro. Uma escapatória. Pensei em tanto. Não pensei nada. Respirei. Senti que estava vivo. Senti. Meu Deus – Deus. Três pensamentos repentinos. Esqueci tudo. Um piano. Uma lágrima. A garganta seca. Meu Deus – eu. Ele, quem é? O que foi feito de tudo? Qual sangue alimentou a calçada? Sangue. Divino. Impuro. Era noite no Japão. O mistério pousou sobre a vida. Não pensei. Pensei. Soltei o ar com a graça de dizer que eu vivo. Como Cristo. Como ele. Como um. Foi. Então. Um anticristo. Um ladrão. Americano. Brasileiro. Comum. 2004010115018. Que vive e morre. “Agora e na hora da nossa morte”. Viveu. Que foi e que é. Que permaneceu. E adormeceu no seu último suspiro – num parto, num dia. Num último dia. Num grito de Deus.

6 comentários:

  1. Lembro da agitação em que tudo se encotrava em minha volta, quando escapulindo entro na internet e leio um recado com um link.
    Balanço os ombros para a agitação e minha alma começa a se revigorar com palavrastão geniais!
    Palavras paridas com sapiência, maturidade e , é claro, enorme sensibilidade.
    Do caos de nosso dia-a-dia podem surgir Obras!
    mas, nem todas Maestrosas como seu texto, Honório Félix.
    Infelizmente mais um número. Infelizmente mais um episódio da guerra civil que vivemos todos os dias.
    Contudo, uma digna reflexão. Um momento de tocar a consciência de muitos por ação através de um sublime dom: transformar tudo em arte escrita. Ah! Adoro as interligações do texto. Inteligentíssimas.
    Aplaudo de pé, você.
    Lamento com medo essa realidade crua.

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  2. Silêncio ou turbilhão? Você escolhe... não importando sua resposta o ciclo continua... e o pó, e o pó, e o pó.

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  3. Não. Já sei: É "'e' o silêncio". Pra finalizar, o silêncio... tsc, não. Sei não.

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